quarta-feira, 28 de setembro de 2016

A perda da fé: as igrejas e a cidade como marcas de uma sociedade secular

(Igreja São Jorge, em Porto Alegre, visível apenas por sua torre acima do viaduto de mesmo nome inaugurado em 2015: a estética moderna sufoca a vida espiritual e expressa uma sociedade voltada ao mundo, à vida utilitária e cada vez mais secular).
 
          Hoje comecei uma atividade que será gradualmente divulgada neste blog: trata-se de verificar, em Porto Alegre, como as igrejas da cidade expressam a secularização da sociedade. Explicando melhor: como a construção das igrejas, por seu estilo e simbolismo, apresentam o processo de perda de religiosidade da população. 
 
          A ideia surgiu no dia de ontem, 27 de setembro. Ao sair da missa na Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, perto de minha casa, parei por um instante e contemplei a torre construída ao lado da nave da igreja. Ao pé havia um placa em pedra que dizia a torre ser uma homenagem a Nosso Senhor Jesus Cristo (não recordo-me com exatidão a mensagem). Acontece que a paróquia data de 1965, quando havia uma igreja de madeira, ao passo que a torre fora inaugurada em junho de 2000. Este descompasso entre a data de fundação do prédio e a placa chamaram minha atenção.
 
(Igreja da paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, onde surgiu a ideia de meu novo trabalho: prédio baixo e religiosamente estéril. A torre, fora da foto, está ao lado, e tem mais ou menos o dobro da altura da igreja.)
 
          Recordo-me, há anos atrás, quando a torre foi erguida. De longe era (e ainda é) possível vê-la por entre as residências dos bairros Chácara das Pedras e Três Figueiras, ambos atendidos pela paróquia e compostos por casas e pequenos edifícios. Antes de sua construção a igreja ficava totalmente escondida entre as construções, e não havia qualquer referência que fosse capaz de identifica-la à distância. Ao lembrar-me disto foi que eu percebi que as torres das igrejas, salvo a representação de apontar ao Céu em sua expressão simbólica (o Alto) através do apontamento do céu em sua concepção física, são marcas de uma autoridade, ponto alto da referência à instituição que guarda a mensagem do Alto. Sendo a paróquia uma filial da Igreja Católica, ela é, por legitimidade da instituição a que pertence, detentora de um exclusividade espiritual: a de apontar o caminho certo para aqueles que desejam chegar ao Céu, ao Paraíso, à Deus. Um igreja alta com suas torres erguendo-se sobre todas as demais construções mostra que este é o lugar mais importante, porque ele aponta de onde todos viemos e para onde todos devemos retornar. A igreja é a referência, e a torre, referência visual para a comunidade que a cerca, aponta o caminho que somos chamados a seguir. Chegar à igreja é trilhar o caminho para o Céu.
 
          Após contemplar a torre comecei a lembrar-me da arquitetura outras igrejas: as mais recentes, com seu estilo moderno, perderam muito de sua representação simbólica; algumas sequer têm um torre que se destaque na paisagem, outras, com suas torres majestosas ou imponentes, foram sufocadas pelo crescimento urbano em seu entorno. Em todos estes casos o mundo secular (não religioso) prevaleceu sobre o mundo espiritual, representado pelas igrejas e destacados por suas torres.
 
(Livro clássico de Peter Berger. Publicado originalmente em 1967 e em português em 1985, o sociólogo americano afirmava que o pluralismo religioso era resultado da sociedade moderna, que se tornaria cada vez mais secular. O autor revisou sua tese no artigo A dessecularização do mundo, publicado em 1999, afirmando que as religiões se readaptavam à nova situação e lutavam por um lugar ao sol.)

Mas o que se entende exatamente por secularização? Grosso modo secularização é a subtração da religiosidade da sociedade em todos os seus aspectos como: frequência às missas e cultos, a mudança de comportamento, artes, literatura, cosmovisão (modo de ver a realidade), cultura, educação, racionalidade, vestimenta, linguagem, etc. Na sociologia da religião o termo secularização é largamente discutido e não há consenso entre os acadêmicos sobre sua definição. O sociólogo americano Peter Berger, um dos maiores expoentes da sociologia da religião, ajuda a entender melhor este conceito. No clássico livro O Dossel Sagrado de 1967 ele diz que a secularização é "o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos" (1985, p. 119), e em seguida ele prossegue:
Quando falamos em cultura e símbolos, todavia, afirmamos implicitamente que a secularização é mais que um processo socioestrutural. Ela afeta a totalidade da vida cultural e da ideação e pode ser observada no declínio dos conteúdos religiosos nas artes, na filosofia, na literatura e, sobretudo, na ascensão da ciência. Mais ainda, subentende-se aqui que a secularização também tem um lado subjetivo. Assim como há uma secularização da sociedade e da cultura, também há uma secularização da consciência. Isso significa, simplificando, que o Ocidente moderno tem produzido um número crescente de indivíduos que encaram o mundo e suas próprias vidas sem o recurso às interpretações religiosas (1985, p. 119-120).
           Ao longo das próximas semanas divulgarei informações sobre as paróquias, igrejas e algumas capelas de Porto Alegre. Tomarei como referência a presença (ou não) das torres nestas igrejas (algumas como ponto alto do edifício, outros como campanários, outros com a presença de um santo, etc) e a partir delas mostrarei brevemente como a igreja evoluiu ao longo do tempo e como sua expressão simbólica e religiosa se perdeu (ou, em alguns casos, foi fortalecida) . O objetivo não é discutir estilos arquitetônicos, e sim o que especificamente a torre e, de forma geral, sua igreja expressam numa sociedade que com o passar das gerações perdeu muito de sua religiosidade original.

          Assim poderemos deduzir que tipo de sociedade estamos criando: uma onde a representação de Deus, sufocado pela estética de uma cidade moderna onde as construções disputam espaços umas com as outras sendo a igreja apenas mais um destes edifícios, resume-se cada vez mais à vida privada; ou outra onde Ele, como representação máxima da fé cristã, resiste com o objetivo de ser visto nas ruas e acima dos telhados.

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